Como previsto, a Universidade do Minho concedeu o
doutoramento honoris causa ao ex-Presidente Chissano. Era previsível. Sabe-se que o
núcleo duro daquela Universidade veio da antiga Universidade de Lourenço Marques. E uma parte dos antigos colonos ou acentuam as justificações míticas dos seus feitos ou tentam redimir-se pela penitência. Infelizmente, só uma outra parte consegue sair da refrega cultural e ideológica do passado, via
sentimento de perda, por uma via sem complexos (ou seja, sem noção de contas a pagar ou a receber). O que, neste caso concreto, não diminui em nada, na apreciação académica, a admiração merecida para com esta Universidade dinâmica e que veio, além de muito mais, modernizar uma face do Minho.
Sabe-se que os ex-Presidentes têm uma atracção irresistível para, abandonado o poder, se redimirem dos compromissos acumulados nos seus mandatos através de liturgias exorcistas de valorização da crítica moral e radical. Afinal, um mero processo de compensações, por reequilíbrios purgantes, para a acumulada perda de contacto com a realidade que a imersão nos salões dos palácios do poder lhes retiraram. Como se o poder lhes tivesse tirado a luz do brilho das dores dos humanos e depois, enfim soltos, a liberdade dos comuns lhes cegassem os olhos, apetecendo-lhes resolver o que não resolveram e de uma penada. Lembrando Soares - o homem que intensificou os
salários em atraso, meteu
o socialismo na gaveta e foi muleta importante do
cavaquismo -, não anda agora por aí armado em
pró-bloquista, disputando rebeldias com o radicalismo de sacristia do Louçã - o homem das mil santidades para os mil pecados? E se Soares, o
imenso Soares, assim se tornou, porque é que o manhoso do Chissano havia de degenerar à sina dos seus iguais em circunstâncias?
Pois o Presidente que, no seu mandato, tudo permitiu (ou incentivou?) para que o seu povo regredisse para o abandono, consolidando-se a transferência do processo de substituição da dominação colonial pela da máfia frelimista, agora o núcleo duro da acumulação capitalista selvagem e acelerada para construção instantânea de uma
grande burguesia nacional, recebeu o doutoramento honroso da Universidade do Minho. E discursou como discursam os radicais esquerdistas africanos. E ouvindo-o, até parece que Chissano se dá hoje às liberdades de homilia próprias de um virtual
bloquista à moçambicana.
E que desafio nos trouxe Chissano? O de Portugal e outras potências coloniais, mais os outros países que beneficiaram da
escravatura (supondo-se que isso inclua todos da América do Norte, do Sul, mais a Central), apresentarem aos povos africanos
desculpas oficiais pelas atrocidades cometidas.
Esta é uma reparação devida porque o comércio negreiro é uma das páginas mais vergonhosas do esbulho humano. Mas, se incompleta, torna-se injusta e cínica. Aos Países a que Chissano dirige a sua reclamação, haverá a juntar
os necessários pedidos de desculpa de África aos africanos, em nome dos seus chefes tribais que levaram os escravos até aos postos de comércio negreiro. Porque não foi a Europa que ensinou aos africanos a arte da escravidão. Ela já era prática corrente nesse como noutros continentes.
Porque escravizar é sempre mais fácil que libertar. O que o comércio negreiro, levado por portugueses e outros, trouxe de diferente aos chefes tribalistas e dominadores africanos foi um maior, global e valorizado mercado. E não valerá a pena lembrar (como foi o caso no Congo) as resistências furiosas e aguerridas que a abolição da escravatura pelos países europeus enfrentou perante os clans africanos que, assim, viam perder-se uma riquíssima receita.
Não direi que Chissano devia, no seu
doutoramento, pedir desculpa aos moçambicanos pela forma como supervisionou os seus destinos nos seus anos de presidência. Porque acho que esse pedido de desculpas deve acontecer em solo moçambicano. E seria de mau gosto neo-colonial fazê-lo em Braga, perante aquela típica Academia. Mas não devia, pelo menos, armar-se em paladino do sofrimento africano com culpas repartidas. Ele, particularmente ele. Mas, sabe-se, nos ex-Presidentes há uma terrível pulsão para soltarem a língua. Então, se desculpamos Soares porque não perdoar a Chissano?