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Percebo. Percebo mesmo os visitantes vindos de paÃses saÃdos há pouco da rigidez das ditaduras e que se comportam, entre nós, como semi-bárbaros, olhando tudo com olhos de besugo (ou seja, vendo tudo sem nada ver), falando alto como se tivessem falas atrasadas, com modos pouco polidos por culpa das carências acumuladas em espaços para convÃvio solto. Parecendo que a maioria deles, tem uma pressa medonha de se exprimir antes que os olhos de um polÃcia das falas e dos costumes se lhes espetem nas costas.
E se percebo é porque já passei pelo mesmo. Ou parecido. Pior, melhor dizendo. Lembro-me de, ainda na ditadura, escancarar espantos sôfregos perante as luzes livres nas escapadelas a Londres ou Paris. Nunca me esquece que, embarcado no aeroporto de Lisboa a ler no jornal a
pinochetada contra Allende e a ranger os dentes a mostrar o passaporte aos
pides, logo que chegado, fui direitinho a uma manifestação na baixa londrina para gritar
abaixo o fascismo, atónito por não levar uma chanfalhada nos costados a juntar às tantas que levava na minha colecção privativa. E percorrer Paris, folheando e comprando livros que faziam parecer de catequese os que, em Lisboa, comprava por baixo do balcão no
Barata da Avenida de Roma. E como olhava o Tamisa e o Sena como se fossem rios mais livres que o Tejo, achando-os epicamente bonitos, quando, vendo bem, nem lhe chegam a um dos calcanhares.
Era uma vingança e uma redenção. Aquela liberdade vingava-me das mentes menores que nos compartimentavam e diminuÃam, tornando-nos provincianos mesquinhos, apelando ao safar por via da esperteza canalha, puxando da nota se fosse caso disso. Verdade que era uma liberdade a prazo, o pesadelo voltava na coabitação com os boçais que nos dominavam e nos tornavam rasteiros, criando-nos hábitos de escolher a esperteza parola como modelo para ultrapassar, pelo simbólico e pelo retrocesso, a distância dos hábitos civilizados. Mas sabia tão bem a sensação de que não estava condenado a ser um bimbo por aqui me terem nascido.
Hoje, não sei porquê, senti-me na margem esquerda do Sena, achei o rio próximo do Tejo e muito mais profundo e grandioso que o Douro. Divagações, pois claro. E raio de regressões que estas são. Mas o certo é que ninguém me tira a sensação de hora e meia da liberdade de me sentir parisiense. Mas a vida continua. Pois continua. Estamos cá. E por isso mesmo, há que ter cuidado sobre o sÃtio onde se guarda a carteira.