
O Império Núbio foi dos mais poderosos e temidos de África. Guerreiros corajosos e implacáveis, determinados e orgulhosos, ricos na representação artística e monumental da sua religiosidade e do seu poder. Resumindo, dados à terra, à arte e à guerra. Tudo em demasia para domesticar África que necessitou de os destroçar para equilibrar os espaços das etnias e a ocupação árabe e europeia. Só com a decadência núbia, o norte de África cortou os cordões com a África Negra, contando com o corte do Grande Saara, em que berberes e tuaregues ficaram com a missão de tampão mas espetando sempre o dedo das suas ambições.
Hoje, os núbios arrastam-se na sorte retalhada pelo Alto Egipto, Sudão, Somália e Etiópia. Sobretudo fechados pela islamização imposta e no hermetismo étnico. Alimentam-se ainda do orgulho das façanhas passadas. E vão subsistindo.
Não foi fácil o domínio e a ocupação egípcia sobre as terras núbias, na estruturação do Império do Alto Egipto (Sul). Conseguida apenas com a elevação dos núbios a elite guerreira do Império e que tão bons serviços desempenhou na defesa e na expansão egípcia. Tantos e tão decisivos que núbios seriam alguns dos Faraós.
A unificação do Alto e do Baixo Egipto ditou o início da secundarização dos núbios. Até porque os mamelucos da cavalaria de simitarra árabe desembainhada haveriam de desempenhar depois o papel de guarda pretoriana do Império. Os ventos de poder passaram a deslocar-se mais para Norte. O papiro ganhou força à flor de lótus, embora, na simbologia imperial, apareçam sempre lado a lado como sinal de unificação.
As ocupações romana (fase anti-cristã e cristã) e árabe-muçulmana, selaram a subalternização núbia. A islamização de todo o Egipto (sobrando a diferenciação copta heresia mas persistência do cristianismo) tornou a ideologia de ocupação árabe numa massa de poder e obediência. Ou seja, acabou com as veleidades de diferenciação ameaçadora. E os núbios passaram a ser, apenas, os
pretos do Sul (ou seja da África Negra). Prestando culto ao Corão mas mitigando-o com rituais de culto animista.
Assuão é a grande cidade da minoria núbia. E o vale do Alto Egipto a terra da sua subsistência orgulhosa. Melhor, era. O Lago Nasser criado pela barragem do Assuão, meteu-lhes aldeias, terras, cultura e parte do seu orgulho, na profundeza das águas. Quiseram dar-lhes habitações de reconstituição de vida comunitária fabricadas em matérias e geometrias não adequados ao clima tórrido do Sul, tentando modernizá-los e urbanizá-los. Recusaram. Em alternativa, ofereceram-lhes o vale ocidental (que os egípcios não ocupavam antes por serem a
terra dos mortos) para se reinstalarem. Uma parte reconstituiu aí as suas comunidades, passando a viver sobretudo do turismo (alugando as vistas das suas casas como curiosidade exótica, alugando passeios de camelo e de faluca, tecendo artesanatos pelo domínio da sabedoria africana, prestando os serviços mais desqualificados na hotelaria, fazendo tatuagens nos braços cor de leite dos visitantes europeus, encharcando o comércio informal). A diáspora núbia espalha-se do Alto até ao Baixo Egipto, notando-se bem pela cor de pele. Estão nos serviços mais duros e mais mal pagos de todo o Egipto (menos no Sinai, onde essas funções são apanágio dos berberes). Preenchem o gigantesco aparelho policial que apresenta um polícia (sobretudo do numerosíssimo corpo da
Polícia do Turismo e das Antiguidades) em cada esquina, mister que lhes sobra das suas tradições bélicas. Julgo que bendizem a
pax egípcia quando a comparam com a vida dos seus irmãos sudaneses, somalis, eritreus e etíopes. Talvez porque Darfur fica-lhes ali bem perto.
(Foto de Pedro Tunes)Nota: Verdade, falei sobretudo dos
homens núbios. Porquê? Apenas porque as
mulheres núbias merecem texto à parte.