
O Egipto é um dos países mais importantes e poderosos de África, do mundo de ocupação árabe/muçulmana e do Magrebe. Acresce a sua colocação numa zona nevrálgica de transição de África para o Mediterrâneo, de África para a Ásia, paredes meias com Líbia, Israel, Palestina e Arábia Saudita. Possui o Canal do Suez que assegura a rota entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho/Índico.
Com uma área territorial imensa, a sua população de setenta milhões de almas (devotas de Maomé na sua esmagadora maioria, tanta que quase faz o pleno) concentra-se num enorme
T (rodeado de deserto inóspito) formado pelo vale do Nilo (cujas margens com vida humana, animal e vegetal, raramente excedem os cem metros) e a costa mediterrânica. No Cairo, amontoam-se dezoito milhões (!) de egípcios. Em mais de noventa por cento do território reina o deserto absolutamente inabitável.
O Egipto enquadrou-se, desde o poder pré-feudal, dentro do perfil de colónia desejada, tendo sido dominado por quase todas as potências com apetência colonizadora. Julgo que, essencialmente, devido a três factores o seu posicionamento estratégico, as riquezas naturais e o peso simbólico da sua riquíssima civilização, propícia a gerar quistos de complexos na ideologia de superioridade dos conquistadores. A regra foi sempre a rendição cultural dos ocupantes à força monstruosa e inapagável da civilização acumulada no vale do Nilo. Os colonizadores dominaram, expropriaram, exploraram, mas tiveram sempre de se ajoelhar perante a monumentalidade inapagável daquela herança civilizacional inesgotável. Esse mesmo efeito de continuidade de sublimação da grandeza humana (as mais das vezes pela representação através do absurdo a desafiar todos os limites) levou a que o poder faraónico tivesse sido ocupado, em várias fases, por minorias de etnias, de mercenários ou de ocupantes - núbios, mamelucos e ptolomeicos. Ou seja, até à ocupação romano-cristã, mesmo quando as dinastias egípcias fraquejavam, o mando era sempre usurpado pela continuidade da representação faraónica.
O domínio romano-cristão foi o primeiro que tentou levar a cabo o genocídio cultural da civilização egípcia. Mas a ânsia de impor o monoteísmo e apagar os traços das adorações pagãs revelou-se estulto. Ficaram umas tantas picagens de ridículo impotente nalguns sinais de culto e pouco mais. A tarefa não podia ser cumprida. Tanto mais que os mantos das areias do deserto se encarregaram de proteger a maior parte dos símbolos, cobrindo-os e conservando-os. Assim, estranho paradoxo, o deserto sempre em luta de posse com o vale do Nilo mostrou-se com um tremendo fair play, protegendo o inimigo de sempre, oferecendo-lhe as areias protectoras para preservar a cultura criada pelo rio, o rival de sempre e para sempre. Dir-se-á, em ironia, que a Barragem do Assuão pelo favor feito à progressão do deserto terá sido o tributo com que Nasser e os soviéticos, na segunda metade do século XX, resolveram pagar a dívida de conservação cultural que o deserto antes havia prestado ao Nilo.
Na posterior ocupação islâmica, bastou o mando e Maomé, semeando mesquitas entre os espaços e as marcas anteriores. O Corão não deitou abaixo pirâmides, limitou-se a abrir as folhas, usando-as como espaldar. Ocupantes prosaicos estes. Até hoje. Sobretudo hoje.
O domínio otomano integrou o Egipto no seu espaço imperial, dando-lhe dignidade subalterna proporcional ao seu valor. Na condição que o Cairo não tentasse disputar a importância a Istambul. Não o fez. Os egípcios dobraram a espinha. A monarquia passou a ser
faz de conta. Com os otomanos, depois com franceses e ingleses. Foi assim até Nasser. Porque depois de Nasser, o Egipto volta a entrar na História. Outra história, pois claro. Do velho Egipto colonial, sobrou pouco mais que Faruk, um rei tonto derretido em luxúria. O último. Desprezado e escorraçado pelos seus. Exilado com os bens surripiados e aboletando-se à sombra da hospitalidade de Salazar que lhe deu cama e roupa lavada na pátria lusa, a troco dos dinheiros para gastos que ele conseguiu meter na mala e por cá foi espalhando.
(Foto de Pedro Tunes)